terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Resenha: As águas-vivas não sabem de si


No livro "As águas vivas não sabem de si" o som tem muita importância. Ele aparece em forma de conversas, lamentos solitários e chamados ancestrais. Assim, penso que uma boa forma de começar a ler esta resenha é escutando a playlist especial da história, preparada pela própria autora:



"De olhos fechados, ela pairou nesse lugar desconhecido de vozes e sons misteriosos. Sons formam imagens. O doutor sabia de algo, as baleias sabiam mais que ele, e Corina, que preferia não saber de nada, acabou enxergando. Na escuridão sob suas pálpebras, seu ouvido a conduziu para a imagem de algo chamando, um borrão prateado, tentáculos, uma angústia." (página 142)


whoa v whale

Na estação Auris a protagonista Corina, mergulhadora, e seu colega, Arraia, a engenheira Susana, o pesquisador Martin e seu assistente, Maurício estão trabalhando em uma expedição no fundo do oceano para registro acústico de ecossistema hidrotermal e testando de trajes de mergulho. Presos em uma caixa metálica em grande profundidade, todos eles guardam segredos e, mais resistente que os trajes é a armadura que eles constroem em torno de si.

Em segundo plano, temos a narrativa que, ao meu ver, foi a mais fascinante: a do ponto de vista do próprio mar. Polvos, águas-vivas, baleias e outras espécies tem voz na história. As criaturas, dotadas de inteligência, sentimentos e até mesmo personalidade, colocam à prova  nossa arrogância em nos enxergamos como única espécie pensante.

Outro ponto que a autora também aborda é como as criaturas se enxergam como parte da Terra, parte do oceano, enquanto o ser humano insiste em se enxergar como um ser à parte, e pior que isso, como dono do planeta e das formas de vida que o habitam.

jellyfish animated GIF

"...mas não passavam despercebidos com egos tão grandes - o meu planeta, achavam, mas nunca a percepção de eram o planeta, porque o ego sempre fazia o ter vir antes do ser, fazia os indivíduos se desgrudarem do todo e acreditarem tão firmemente que eram algo à parte, que flutuavam sozinhos no espaço, tão pequenos, devorados pela imensidão do abismo."

Porém, essa parte da história não se dá de forma linear. Ora vemos criaturas que acompanham a expedição, ora retornamos até o momento em que a vida surgiu na Terra. Afinal, como o próprio livro diz, "o que são as eras quando se tem a idade do planeta?"

"Descobriu com alguma infelicidade que ser um indivíduo era também ser pequeno e sentir medo o tempo inteiro. Então foi invadida por uma enorme tristeza: se todos aqueles à sua volta também fossem como ela, então igualmente eram seres preenchidos de medo, sofrimento e solidão, todos fazendo o seu possível para sobreviverem, assim como ela." (página 245)

animals ocean swimming floating jellyfish



Infelizmente senti alguns problemas com a velocidade de desenvolvimento da história. No início o livro é bem arrastado e, quando vamos nos aproximando do fim, uma série de acontecimentos vão se atropelando. Assim, passamos muito rapidamente pelos momentos de clímax da história e quase não temos tempo de os assimilar ou refletir sobre eles.


Outro ponto que me incomodou diz respeito à personagem Corina. Nos é dito que a personagem é uma mergulhadora com anos de prática, mas isso não condiz com suas atitudes egoístas, perigosas e imprudentes durante o trabalho. A autora tenta nos convencer afirmando várias vezes durante o livro que Corina é muito teimosa, porém o grau de risco das atitudes dela faz "teimosia" parecer uma explicação um tanto quanto besta. O personagem Arraia, por exemplo, também se arrisca na expedição, mas em poucos parágrafos Aline nos conta uma história que convence muito mais do que as várias páginas gastas com Corina que acabam por descrevê-la apenas como "teimosa". O segredo que Corina guarda, que deveria ter grande importância para a trama, também quase não é desenvolvido.


O que mais me impressionou foi a forma que Aline domina a linguagem, nos fazendo ouvir desde os murmurar do oceano , o barulho das bolhas de ar saindo dos mergulhadores, até o ruido metálico do gerador de Auris. Durante a leitura eu tive a certeza de que a autora devia ter mergulhado centenas de vezes para conseguir descrever aquele cenário com tanta habilidade. Imaginem só a minha surpresa quando, em seu blog, a autora diz que não sabe nem nadar? 


 jellyfish

Outro ponto que me agradou bastante foram os trechos do livro do Dr. Martin, extremamente realistas. Mais uma prova do domínio magistral da linguagem por Aline.


Apesar das deficiências que encontrei na construção de personagens e na velocidade da  narrativa, a beleza, a poesia e as reflexões sobre nossa existência e a solidão tornam esse livro uma preciosidade e eu recomendo bastante a leitura.


" 'Sabia que as baleias viajam em túneis acústicos para poder chamar pelas outras? É impressionante, eu já vi'. Ela pensou nos buracos que as pessoas carregavam dentro de si e imaginou que não fossem defeitos ou problemas, mas canais pelos quais era possível navegar para alcançar o outro, porque ninguém podia funcionar sozinho."(página 255)


whale



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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Resenha: De gados e homens


  Ao descrever Ana Paula Maia em um vídeo¹ do canal Homo Literatus, Vilto Reis usou a palavra "única". Ele não poderia estar mais certo. Nunca li nada parecido com esta narrativa, que, apesar das poucas páginas, possui muita profundidade. Jogando por terra os conceitos sobre o que é "literatura feminina", a autora nos leva ao mundo sujo e insalubre dos abatedouros, dá voz aos "brutamontes" que fazem o trabalho que ninguém quer. Quem são esses homens?


"Apanha o terço  que carrega sobre o peito e faz uma oração movendo continuamente os lábios, emitindo vez ou outra um som sibilante que se mistura aos zunidos dos pernilongos ao canto das cigarras. Edgar Wilson  gostaria de saber o que um homem como Helmuth pede em suas orações; talvez o mesmo que ele, talvez o que todo homem ali peça."(página 77)

Edgar Wilson, atordoador dos bovinos no Matadouro Touro do Milo, se sente próximo dos ruminantes e os conhece como ninguém. O que ele faz vai além desmaiar os animais antes da degola, é um ritual de encomendar a alma de cada animal. Ele cicia e olha dentro dos olhos de cada um deles, sempre buscando encontrar algo, mas a única coisa que consegue enxergar naquele negrume é o seu próprio reflexo. Ao nos apresentar Edgar, Ana Paula Maia desconstrói o estigma do trabalhador braçal com mente rasa. Apesar de ser um homem de poucas palavras, ele nos surpreende com suas reflexões.

"Em lugares onde o sangue se mistura ao solo  à água é dificil fazer qualquer tipo de distinção entre o humano e o animal. Edgar sente-se tão afinado com os ruminantes, com seus olhares insondáveis e a vibração do sangue em suas correntes sanguíneas, que às vezes se perde em sua consciência ao questionar quem é o homem e quem é o ruminante."(página 68)

O ambiente do matadouro, contraposto à assepsia da fábrica de hambúrgueres, é brutal, sujo.  A autora expõe como tentamos nos distanciar da realidade de que aquilo que comemos antes foi um animal vivo, morto com o propósito exclusivo de nos alimentar.

"Cumprido o seu dever, ele vai para a cozinha do alojamento e frita os hambúrgueres. Com os colegas comem toda a caixa, admirados. Assim, redondo e temperado, nem parece ter sido um boi. Não se pode vislumbrar o horror desmedido que há por trás de algo tão saboroso e delicado." (página 21)


Ela também denuncia as péssimas condições de trabalho em que os homens se encontram. A sujeira, a falta de equipamentos de segurança, as intermináveis horas de trabalho e os salários baixos. Os personagens, porém, parecem conformados com essa realidade. Em um lugar deserto em que muitos passam fome, ter um trabalho e um teto é ser afortunado.

Não há como ler este livro e sair impune às provocações da autora. O que distingue os homens dos animais? Porque não enxergamos a morte deles como assassinato? Porque insistimos em desviar o olhar e a mente dessa situação?

Apesar da temática polêmica, o livro passa longe de ser panfletário, deixando o leitor apenas com questionamentos, sem fornecer respostas simplistas.

Uma última observação a ser feita é que livro incrível como esse merecia uma edição à altura, o que não ocorreu. A impressão possui falhas, parece que foi feita com a tinta acabando, o corte das folhas não está completamente reto e a foto da autora na orelha do livro está muito escura, quase não enxergamos. Mas esses pequenos problemas não comprometem em nada a leitura,  aponto apenas o que poderia melhorar. 


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domingo, 29 de janeiro de 2017

Resenha: Em Algum Lugar nas Estrelas




Apesar de "Em Algum Lugar nas Estrelas" ter sido um dos livros mais comentados na internet em 2016, por algum motivo ele não estava na minha lista de leituras. Porém, por destino ou bom gosto literário de meu namorado, ganhei este livro de presente no final do ano e resolvi dar uma chance a ele.  

A primeira impressão que tive foi de deslumbramento com a capa e ao abri-lo, me surpreendi ainda mais ao ver que as folhas de guarda e folhas de rosto estavam cheias de ilustrações belíssimas das constelações. Uma das características da Editora Darkside é o capricho com a edição dos livros, e este com certeza mantém o padrão. Agora, antes de passarmos à resenha, comece a escutar a playlist especialmente criada para o livro pela Darkside:


Fonte da imagem: http://www.darksidebooks.com.br/wp-content/uploads/2016/04/Em-Algum-Lugar-3D-livro-aberto-completo.png


O enredo se passa em 1945 sob o ponto de vista de Jackie Baker, um garoto do Kansas de 14 anos que, ao subitamente perder a mãe, se vê sozinho com o pai, um capitão da marinha atormentado pela guerra que não sabe como lidar com o luto e como cuidar do filho que não vê a quatro anos. O menino então é colocado na Escola para Meninos Morton Hill, um colégio interno próximo ao estaleiro onde seu pai ocupa um posto. Longe dos campos planos do Kansas, ele tenta se adaptar à rotina do colégio até conhecer Early Auden.

"Li em algum lugar, provavelmente na revista National Geographic, que é possível saber muito sobre as pessoas pelo que elas idolatram. Acho que cada lugar tem seus templos. Na minha cidade, a igreja é o centro de tudo: bazares, batizados, casamentos, leilões, bingo. Na minha antiga escola, o campo de beisebol era o nosso altar. As pessoas da cidade enchiam as arquibancadas e torciam pela vitória. Nós, os jogadores, conhecíamos todas as escrituras do evangelho do beisebol e todos os santos padroeiros: Babe Ruth, Lou Gehrig, Ty Cobb e Joe DiMaggio. No momento em que pisei no estaleiro, soube que aquele era o altar da Morton Hill."

Inicialmente, Jackie se sente intimidado pelas "esquisitices" do garoto solitário, que mal assiste às aulas, determina que cantor vai ouvir pelo dia da semana e pelo clima e que acredita que o número Pi conta a história de uma pessoa real. Eles se aproximam quando Early se oferece para o ajudar a praticar remo e a restaurar o barco de Jackie para participar de uma regata. Quando as férias chegam e Jackie é deixado sozinho porque o mau tempo impediu o pai de buscá-lo, Early o convida para uma cruzada. Ele precisa desesperadamente encontrar Pi, que estaria perdido e em perigo. Assim, em meio à história, temos também as narrativas de Early sobre Pi.

"Antes de as estrelas terem nomes, antes de os homens saberem como usá-las para  traçar seus caminhos, antes de alguém se aventurar além do próprio horizonte, existia um menino que se perguntava o que havia além de tudo aquilo. Ele olhava para as estrelas com admiração e fascínio, mas o fascínio não era só consequência da veneração. Era fruto também de uma pergunta: por que?"

A doçura desse livro me encantou profundamente. Apesar de tratar de temas complexos, a linguagem é poética, suave e os personagens cativantes. Os trechos em que Jackie fala sobre a mãe são maravilhosos. Embora não se encaixe perfeitamente no gênero fantasia, o livro possui alguns acontecimentos sobrenaturais, que fazem o leitor se questionar se aquilo realmente teria acontecido ou se era imaginação dos garotos.

"Ninguém pode dizer nada sobre saber o nome das estrelas. O céu não é um campeonato ou uma prova. A única pergunta é: você consegue olhar para cima? Absorver tudo aquilo? Quanto ao nome das constelações, elas não são meio nem fim. As estrelas não estão presas umas às outras. Estão lá para serem admiradas. Olhadas, desfrutadas."

Outro ponto marcante do livro é a maneira com que a autora aborda o autismo de Early. Ele não nos provoca pena, mas sim fascínio, o enxergamos com um dom extraordinário. No momento em que comecei a leitura, logo me lembrei de Daniel Tammet, um matemático brilhante que enxerga os números com cores e formas. Minha suspeita se confirmou quando, ao final do livro, a autora afirma que se baseou em Tammet para criar o personagem.

Esta bela história sobre amizade e reconexão com a família agrada qualquer idade, tem a dose certa de adrenalina e sentimento, as descrições nos fazem sentir como se estivéssemos realmente no Maine e a paixão de Early é capaz de despertar a curiosidade matemática até mesmo naqueles que mais a detestam! Eu recomendo bastante a leitura!

Um abraço, 
Bella

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