No livro "As águas vivas não sabem de si" o som tem muita importância. Ele aparece em forma de conversas, lamentos solitários e chamados ancestrais. Assim, penso que uma boa forma de começar a ler esta resenha é escutando a playlist especial da história, preparada pela própria autora:
"De olhos fechados, ela pairou nesse lugar desconhecido de vozes e sons misteriosos. Sons formam imagens. O doutor sabia de algo, as baleias sabiam mais que ele, e Corina, que preferia não saber de nada, acabou enxergando. Na escuridão sob suas pálpebras, seu ouvido a conduziu para a imagem de algo chamando, um borrão prateado, tentáculos, uma angústia." (página 142)
Na estação Auris a protagonista Corina, mergulhadora, e seu colega, Arraia, a engenheira Susana, o pesquisador Martin e seu assistente, Maurício estão trabalhando em uma expedição no fundo do oceano para registro acústico de ecossistema hidrotermal e testando de trajes de mergulho. Presos em uma caixa metálica em grande profundidade, todos eles guardam segredos e, mais resistente que os trajes é a armadura que eles constroem em torno de si.
Em segundo plano, temos a narrativa que, ao meu ver, foi a mais fascinante: a do ponto de vista do próprio mar. Polvos, águas-vivas, baleias e outras espécies tem voz na história. As criaturas, dotadas de inteligência, sentimentos e até mesmo personalidade, colocam à prova nossa arrogância em nos enxergamos como única espécie pensante.
Outro ponto que a autora também aborda é como as criaturas se enxergam como parte da Terra, parte do oceano, enquanto o ser humano insiste em se enxergar como um ser à parte, e pior que isso, como dono do planeta e das formas de vida que o habitam.
"...mas não passavam despercebidos com egos tão grandes - o meu planeta, achavam, mas nunca a percepção de eram o planeta, porque o ego sempre fazia o ter vir antes do ser, fazia os indivíduos se desgrudarem do todo e acreditarem tão firmemente que eram algo à parte, que flutuavam sozinhos no espaço, tão pequenos, devorados pela imensidão do abismo."
Porém, essa parte da história não se dá de forma linear. Ora vemos criaturas que acompanham a expedição, ora retornamos até o momento em que a vida surgiu na Terra. Afinal, como o próprio livro diz, "o que são as eras quando se tem a idade do planeta?"
"Descobriu com alguma infelicidade que ser um indivíduo era também ser pequeno e sentir medo o tempo inteiro. Então foi invadida por uma enorme tristeza: se todos aqueles à sua volta também fossem como ela, então igualmente eram seres preenchidos de medo, sofrimento e solidão, todos fazendo o seu possível para sobreviverem, assim como ela." (página 245)
Infelizmente senti alguns problemas com a velocidade de desenvolvimento da história. No início o livro é bem arrastado e, quando vamos nos aproximando do fim, uma série de acontecimentos vão se atropelando. Assim, passamos muito rapidamente pelos momentos de clímax da história e quase não temos tempo de os assimilar ou refletir sobre eles.
Outro ponto que me incomodou diz respeito à personagem Corina. Nos é dito que a personagem é uma mergulhadora com anos de prática, mas isso não condiz com suas atitudes egoístas, perigosas e imprudentes durante o trabalho. A autora tenta nos convencer afirmando várias vezes durante o livro que Corina é muito teimosa, porém o grau de risco das atitudes dela faz "teimosia" parecer uma explicação um tanto quanto besta. O personagem Arraia, por exemplo, também se arrisca na expedição, mas em poucos parágrafos Aline nos conta uma história que convence muito mais do que as várias páginas gastas com Corina que acabam por descrevê-la apenas como "teimosa". O segredo que Corina guarda, que deveria ter grande importância para a trama, também quase não é desenvolvido.
O que mais me impressionou foi a forma que Aline domina a linguagem, nos fazendo ouvir desde os murmurar do oceano , o barulho das bolhas de ar saindo dos mergulhadores, até o ruido metálico do gerador de Auris. Durante a leitura eu tive a certeza de que a autora devia ter mergulhado centenas de vezes para conseguir descrever aquele cenário com tanta habilidade. Imaginem só a minha surpresa quando, em seu blog, a autora diz que não sabe nem nadar?
Outro ponto que me agradou bastante foram os trechos do livro do Dr. Martin, extremamente realistas. Mais uma prova do domínio magistral da linguagem por Aline.
Apesar das deficiências que encontrei na construção de personagens e na velocidade da narrativa, a beleza, a poesia e as reflexões sobre nossa existência e a solidão tornam esse livro uma preciosidade e eu recomendo bastante a leitura.
" 'Sabia que as baleias viajam em túneis acústicos para poder chamar pelas outras? É impressionante, eu já vi'. Ela pensou nos buracos que as pessoas carregavam dentro de si e imaginou que não fossem defeitos ou problemas, mas canais pelos quais era possível navegar para alcançar o outro, porque ninguém podia funcionar sozinho."(página 255)
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