Angélica Freitas é uma poeta e jornalista gaúcha nascida em 1973, autora de Rilke Shake (São Paulo: Cosac Naify, 2007) e co-editora da revista de poesia Modo de Usar & Co. Com sua língua afiada, ela aborda as mais diversas questões sobre as mulheres em seu livro "um útero é do tamanho de um punho", publicado em 2012 também pela Cosac Naify. Se você ainda pensa que poesia é sinônimo de romantismo, você deve ler Angélica Freitas.
Gordofobia e os padrões de beleza, mudança de sexo e seus desdobramentos no seio familiar, a classificação de mulheres que não se conformavam com os papéis reservados a elas na sociedade e na vida privada como "loucas" e "histéricas" e os maus-tratos que sofriam em manicômios mais parecem temas de um manifesto feminista do que de um livro de poesia, mas lá estão. Ora apresentados de forma delicada, ora irônica, ora pungente.
mulher depois
queridos pai e mãe
tô escrevendo da tailândia
é um país fascinante
tem até elefante
e umas praias bem bacanas
mas tô aqui por outras coisas
embora adore fazer turismo
pai, lembra quando você dizia
que eu parecia uma guria
e a mãe pedia: deixa disso?
pois agora eu virei mulher
não precisa me aceitar
não precisa nem me olhar
mas agora eu sou mulher
Acima: Zelda Fitzgerald foi uma escritora, pintora e bailarina que foi diagnosticada
com esquizofrenia e internada em um sanatório em 1930, onde morreu durante um
incêndio. Apesar de seus inúmeros talentos, ficou conhecida na história apenas como
"a mulher louca de F. Scott Fitzgerald".
Nesse poema, a palavra "enterra" significa tanto o abandono sofrido pela mulher e a perda de sua liberdade e autonomia quanto o comportamento da sociedade que desvia o olhar dessa realidade, a nega. Podemos ver um exemplo disso no genocídio ocorrido em Barbacena/MG. Os tratamentos desumanos e a execução dos internados no Hospital Colônia aconteceu de 1930 a 1980 e fez cerca de 60 mil vítimas¹. Tais atrocidades só ocorreram nessa escala e por tanto tempo porque a sociedade se omitiu, permitiu de forma silenciosa que isso continuasse.
Se as mulheres não são mais internadas em manicômios, infelizmente o ato de chamá-las de "loucas", alegar "descontrole emocional" para desacreditá-las e até mesmo exercer torturas psicológicas perdura até hoje, sendo chamado de "gaslighting".
A autora também aborda o machismo do dia-a-dia: o julgamento de como a mulher se veste, com quem tem relações sexuais, qual o espaço destinado a ela, como ela deve se vestir e comportar em público, seu tratamento como objeto sexual e as demais tentativas do sistema patriarcal em uniformizá-las e colocar como erradas as que não se encaixam no padrão estabelecido pelos homens.
"...mas ela escolheu vermelho
ela sabe o que ela quer
e ela escolheu vestido
e ela é uma mulher
então com base nesses fatos
eu já posso afirmar
que conheço seu desejo
meu caro watson, elementar:
o que ela quer sou euzinho..."
"...me dizia uma amiga que os churrascos
cabem aos homens porque são feitos
fora de casa
às mulheres as alfaces
às alfaces as mulheres..."
"III.
você comeria a joanna newson?
...
IV.
com base no texto publicado, pode-se dizer que joanna newson:
a.( ) é um bom pedaço de bife
b.( ) é uma salada de agrião"
"a mulher é uma construção
a mulher é uma construção
deve ser
a mulher basicamente é para ser
um conjunto habitacional
tudo igual
tudo rebocado
só muda a cor..."
Particularmente interessante nesse poema é a observação de que as mulheres devem ser "um conjunto habitacional" e "rebocadas". Reboco é o revestimento de argamassa de cal usado para cobrir as paredes, encobrindo seu interior e uniformizando a superfície. Já conjunto habitacional é um aglomerado de casas ou prédios que seguem um padrão. Além da colocação pelo eu lírico de que as mulheres devem ser todas iguais, a imagem do conjunto habitacional também sugere a restrição da mulher ao âmbito doméstico e que sua função se resume a ser "habitada" (durante a relação sexual ou na gravidez). O reboco também significa que o interior da mulher deve ficar escondido. Ela não deve demonstrar seus sentimentos verdadeiros, não deve dizer o que pensa.
Em entrevista à revista TPM², a autora conta que a inspiração para o poema que dá título ao livro veio quando foi acompanhar uma amiga num procedimento de aborto legal na Cidade do México e "...senhoras religiosas, católicas, chegaram em uma van e ficaram lá, tentando dissuadir quem faria o aborto. Rezaram, falaram com uma voz super mansa, mas o discurso era forte. Quase que uma intervenção traumática. Era super agressivo. E mesmo depois que as mulheres decidiam entrar pra realizar o aborto, esse grupo ainda continua lá para pressionar os parentes, rezando com megafone, insistindo...".
“...
um útero é do tamanho de um punho
num útero cabem capelas
cabem bancos hóstias crucifixos
cabem padres de pau murcho
cabem freiras de seios quietos
cabem as senhoras católicas
que não usam contraceptivos
cabem as senhoras católicas
militando diante das clínicas
às 6h na cidade do méxico
e cabem seus maridos
em casa dormindo
cabem cabem
sim cabem
e depois vão
comprar pão
…”
Normalmente, quando se pensa num útero, pensa-se em algo extremamente íntimo, escondido. A poetisa mostra como aquilo que pensamos ser privado na verdade está exposto, sendo vigiado por estranhos. O controle sobre este órgão não está nas mãos da mulher.
Angélica também escancara uma importante questão: a de que as consequências do aborto ou da manutenção da gravidez cairão apenas sobre a mulher. As beatas e os padres que “entraram no útero” logo depois saem para comprar pão, ou seja, nada muda em suas vidas.
Mais a frente no mesmo poema, o eu-lírico interrompe seu monólogo a respeito do útero e diz:
“...
questões importantes:
movimentação da bolsa
sacas de soja
reservas de água
barris de petróleo
voltemos ao útero
…”
Vemos nesse trecho uma reflexão sobre como a despeito da seriedade da questão (a cada dois dias, uma mulher morre no Brasil em decorrência do aborto, segundo a OMS ) a discussão sobre o aborto não é vista como urgente pela sociedade. Vemos todos os dias no jornal sobre a queda ou alta da bolsa, mas não nos importamos com as mortes por aborto, não debatemos sobre essa questão.
Para mim, este livro é com certeza memorável. As poesias de Angélica tratam de assuntos comuns e ao mesmo tempo, muito relevantes. Ela dá voz desde à investidoras financeiras à mendigas. Seja você uma mulher engajada em tais questões ou uma que torce o nariz para as desconstruções, eu tenho certeza que em algum momento você irá se identificar, então não perca a chance de ler este livro. Um útero pode não dar soco, mas as palavras de Angélica com certeza dão.
Minha nota:
Abraços,
Bella
¹http://www.brasilpost.com.br/2016/11/09/holocausto-brasileiro-silencio_n_12882906.html
²http://revistatrip.uol.com.br/tpm/um-utero-e-do-tamanho-de-um-punho
Nenhum comentário:
Postar um comentário