quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Resenha: A vida invisível de Eurídice Gusmão



 A rejeição dos escritos de uma das personagens do livro de estréia de Martha Batalha parecia antever o que aconteceria com a autora. Nenhuma das grandes editoras brasileiras queria publicá-lo¹. Porém, tudo mudou na Feira do Livro de Frankfurt de 2015, quando a editora alemã Sührkamp adquiriu os direitos da obra. Logo após, editoras da França, Itália, Portugal, Holanda e Espanha também fizeram a compra. Por fim, a Cia das Letras, que não havia se interessado pelo livro inicialmente, voltou atrás e decidiu publicá-lo em 2016. Intrigada por essa história e pelas críticas favoráveis que o livro recebeu, decidi que iria lê-lo. 

  Eurídice é "a mulher que poderia ter sido", assim como muitas de nossas mães e avós. Cheias de qualidades e talentos, mas condenadas pela sociedade patriarcal a serem servas do lar. Não apenas isso, mas servas do lar que devem fazer todas as tarefas com perfeição, não pensar em nada além de tais tarefas, se manter atraentes para o marido e estar sempre de bom humor. Mulheres com as mais diversas personalidades e interesses foram colocadas dentro de uma caixinha enquanto lhes diziam: Aqui é o seu lugar. E ai de você se ousar sair daí.

"Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas que ela lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar." (pag. 12)


  Uma das características principais do livro é apresentar ao leitor como as personagens chegaram onde estão, como foi seu desenvolvimento psicológico. No caso de Eurídice, isso aconteceu graças à Parte de Eurídice que Não Queria Que Eurídice Fosse Eurídice, o predador da psique, que aos poucos foi a convencendo a se conformar ao status quo e deixar de lado sua essência.
  
  Ainda sobre o desenvolvimento das personagens é muito interessante como a autora utiliza os típicos "clichês", como a vizinha fofoqueira, a mãe solteira, a prostituta, a sogra chata, o marido implicante, etc e os desconstrói. Nenhum dos antagonistas é apresentado como vilão. Todos tem a sua história contada de forma a entendermos porque agem de determinada forma.
  
  Um grande destaque é Filomena, uma ex-prostituta que se torna cuidadora de crianças. Doce, carinhosa, ela destrói todos os estereótipos e protagoniza uma das passagens mais belas do livro.

  Também destaca-se a narrativa sobre Zélia, a vizinha fofoqueira, que vem nos responder como alguém se torna tão amarga a ponto de se deleitar com o sofrimento alheio.

"Zélia, vizinha da casa ao lado. Zélia era uma mulher de muitas frustrações. A maior delas era não ser o Espírito Santo, para tudo ver e tudo saber. Zélia estava na verdade mais para Lobo Mau do que para Espírito Santo, porque tinha olhos grandes para ver melhor e ouvidos grandes para ouvir melhor e uma boca muito grande, que distribuía entre os vizinhos as principais notícias do bairro.
...
Zélia não se tornou um simulacro de ornitorrinco assim, de uma hora para a outra- essas coisas de evolução demoram para acontecer. A transformação começou ainda na infância, quando o que era para ser dom se tornou pesar. Do pai ela herdou o gosto pela notícia, da mãe a vida restrita ao lar. Do mundo ganhou desgostos. Do destino a falta de escolhas. Formou-se assim a essência da fofoqueira."(pags. 15 e 16)



Pela leitura dos trechos, você já deve ter notado a deliciosa escrita da autora. Apesar de o livro contar histórias trágicas, a escrita é muito leve, não subestima o leitor e Martha possui um humor muito refinado. A ironia e a crítica social presentes no livro me lembraram muito as de Jane Austen, como esta, por exemplo:

"...Aquele, ela sabia, era um bom marido. Antenor não sumia na rua em orgias e em casa não levantava a mão. Ganhava bem, reclamava pouco e conversava com as crianças. Ele só não gostava de ser incomodado quando houvia seu rádio ou quando lia seu jornal, quando dormia até tarde e quando descansava depois do almoço, e desde que seus chinelos permanecessem em paralelo ao pé da cama, que seu café fosse servido quase fervendo, que não houvesse natas no leite, que as crianças não corressem pela casa, que as almofadas permanecessem na diagonal..." (pag.33)




  Outro recurso de humor bastante usado pela autora é dar nome em letras maiúsculas para os acontecimentos na vida de Eurídice, como as "Noites de Uísque e Choro", noites em que o marido se embriaga e a agride verbalmente por ela não ter sangrado na lua de mel. 

 Martha Batalha utiliza esse episódio para demonstrar, além da falta de liberdade sexual da mulher, o pouco de conhecimento a respeito do corpo feminino no início do século XX. O hímen é uma membrana que recobre parcialmente a entrada da vagina, resquício da formação embrionária. Alguns cientistas acreditam que ele existe para proteger a vagina de infecções durante a infância. Por muitos anos, o "sangramento" que pode ocorrer com o rompimento do hímen foi associado erroneamente com a virgindade. Existem mulheres que não possuem hímen e mulheres cujo hímen nunca se rompe. Ele também pode se romper durantes atividades cotidianas. Outro tabu é o de que o rompimento do hímen causaria dor, o que não é possível já que ele não possui terminações nervosas.

  No livro, Eurídice, a irmã e a mãe não sangram na noite de núpcias, e isso perturba tanto a mãe que ela até mesmo procura um médico, que a explica que aquilo é normal. Apesar disso, a ignorância dos maridos de Eurídice e de D. Ana, aliada à mentalidade da época, faz com que eles usem isso para diminuí-las.

  Outra personagem que chamou minha atenção foi Maria Rita, essencialmente diferente das demais personagens do livro por tomar a decisão de ser uma "má dona de casa" para dedicar-se à poesia. Em suas próprias palavras, ela é um espírito livre que algemaram ao lar. Percebi nela muitas semelhanças com Sylvia Plath.
  
  O livro me agradou bastante, mas senti que a narrativa se perdeu um pouco no final. Eurídice é deixada de lado e as histórias dos personagens secundários se alongam. Vários anos se passam e em poucas páginas nos deparamos com outra Eurídice. A  velocidade da narrativa modifica-se completamente e não conseguimos acompanhar o desenvolvimento da protagonista. Diz-se que "Eurídice voltou-se ainda mais para dentro de si" mas nada disso é compartilhado com o leitor. 

  Apesar disso, "A vida invisível de Eurídice Gusmão" é um livro memorável e posso dizer que estou ansiosa para os próximos lançamentos de Martha Batalha. 


Minha nota:
Resultado de imagem para quatro estrelas

  
Abraços,
Bella


"Martha Batalha nasceu em Recife, Pernambuco, mas cresceu no Rio de Janeiro. Foi repórter por muitos anos e criou a editora Desiderata, hoje parte do grupo Ediouro. Mudou-se para Nova York em 2008, onde trabalhou no mercado editorial. “A Vida Invisível de Euirídice Gusmão” é seu primeiro livro. Foi vendido para vários países e será adaptado para o cinema. Martha está escrevendo seu segundo romance, uma saga familiar que se passa em Ipanema. Ela vive em Santa Mônica, na Califórnia, com seu marido e dois filhos."²



¹http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/02/1742222-editoras-estrangeiras-acolhem-escritora-brasileira-rejeitada-no-pais.shtml

² http://www.marthabatalha.com/pt/biografia/

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