segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Resenha: De gados e homens


  Ao descrever Ana Paula Maia em um vídeo¹ do canal Homo Literatus, Vilto Reis usou a palavra "única". Ele não poderia estar mais certo. Nunca li nada parecido com esta narrativa, que, apesar das poucas páginas, possui muita profundidade. Jogando por terra os conceitos sobre o que é "literatura feminina", a autora nos leva ao mundo sujo e insalubre dos abatedouros, dá voz aos "brutamontes" que fazem o trabalho que ninguém quer. Quem são esses homens?


"Apanha o terço  que carrega sobre o peito e faz uma oração movendo continuamente os lábios, emitindo vez ou outra um som sibilante que se mistura aos zunidos dos pernilongos ao canto das cigarras. Edgar Wilson  gostaria de saber o que um homem como Helmuth pede em suas orações; talvez o mesmo que ele, talvez o que todo homem ali peça."(página 77)

Edgar Wilson, atordoador dos bovinos no Matadouro Touro do Milo, se sente próximo dos ruminantes e os conhece como ninguém. O que ele faz vai além desmaiar os animais antes da degola, é um ritual de encomendar a alma de cada animal. Ele cicia e olha dentro dos olhos de cada um deles, sempre buscando encontrar algo, mas a única coisa que consegue enxergar naquele negrume é o seu próprio reflexo. Ao nos apresentar Edgar, Ana Paula Maia desconstrói o estigma do trabalhador braçal com mente rasa. Apesar de ser um homem de poucas palavras, ele nos surpreende com suas reflexões.

"Em lugares onde o sangue se mistura ao solo  à água é dificil fazer qualquer tipo de distinção entre o humano e o animal. Edgar sente-se tão afinado com os ruminantes, com seus olhares insondáveis e a vibração do sangue em suas correntes sanguíneas, que às vezes se perde em sua consciência ao questionar quem é o homem e quem é o ruminante."(página 68)

O ambiente do matadouro, contraposto à assepsia da fábrica de hambúrgueres, é brutal, sujo.  A autora expõe como tentamos nos distanciar da realidade de que aquilo que comemos antes foi um animal vivo, morto com o propósito exclusivo de nos alimentar.

"Cumprido o seu dever, ele vai para a cozinha do alojamento e frita os hambúrgueres. Com os colegas comem toda a caixa, admirados. Assim, redondo e temperado, nem parece ter sido um boi. Não se pode vislumbrar o horror desmedido que há por trás de algo tão saboroso e delicado." (página 21)


Ela também denuncia as péssimas condições de trabalho em que os homens se encontram. A sujeira, a falta de equipamentos de segurança, as intermináveis horas de trabalho e os salários baixos. Os personagens, porém, parecem conformados com essa realidade. Em um lugar deserto em que muitos passam fome, ter um trabalho e um teto é ser afortunado.

Não há como ler este livro e sair impune às provocações da autora. O que distingue os homens dos animais? Porque não enxergamos a morte deles como assassinato? Porque insistimos em desviar o olhar e a mente dessa situação?

Apesar da temática polêmica, o livro passa longe de ser panfletário, deixando o leitor apenas com questionamentos, sem fornecer respostas simplistas.

Uma última observação a ser feita é que livro incrível como esse merecia uma edição à altura, o que não ocorreu. A impressão possui falhas, parece que foi feita com a tinta acabando, o corte das folhas não está completamente reto e a foto da autora na orelha do livro está muito escura, quase não enxergamos. Mas esses pequenos problemas não comprometem em nada a leitura,  aponto apenas o que poderia melhorar. 


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